sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Justiça Militar: formas e práticas de controle da Polícia Militar Fluminense





SABRINA SOUZA DA SILVA 


Introdução 

Nesta comunicação pretendo colocar sob descrição mecanismos institucionais de controle da atuação da Polícia Militar Fluminense,  como a Justiça Militar Estadual - responsável por processar réus policiais e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei, além de decidir sobre a perda do posto e da patente de oficiais e da graduação de praças. Buscarei entender quais os mecanismos institucionalmente acionados para implementar os valores oficiais ou oficiosos da Polícia Militar Fluminense, na ocorrência de transgressões, como os assim denominados “desvios de conduta”. 

A pesquisa que resultou neste trabalho foi iniciada em abril de 2009 através do projeto “A imprevisibilidade na administração institucional dos conflitos em público e o “braço da lei”: práticas policiais e formas de controle da atuação da Polícia Militar Fluminense.”, financiado pelo CNPq e executado por mim para meu doutoramento. A metodologia utilizada caracterizou-se pela observação direta em audiências e julgamentos da Auditoria da Justiça Militar do Estado do Rio de Janeiro e realização de entrevistas com o Juiz Auditor desta mesma auditoria. 

A  Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) invoca sua “origem” na criação da Guarda Real de Polícia, instituição organizada militarmente, criada por D. João IV em 1809 para manter a ordem. Afirma a instituição, através  de seus documentos e prota-vozes autorizados. Durante este ano a PMERJ está comemorando 200 anos com diversas festividades. Apesar de ter passado por pequenas reformas e mudanças de nomes, conseguiu manter a continuidade na sua composição e missão - manter a ordem e tranqüilidade pública - desde outubro de 1831. Até hoje a PMERJ mantém a coroa do rei enfeitando seu brasão e tem a sua Academia, de formação de oficiais, denominada Dom João VI. No entanto, por que a prática de policiamento ostensivo é realizada por uma polícia militarizada? 

Justificado pelos freqüentes problemas disciplinares entre pedestres e guardas nacionais, no seu período inicial, e entre guardas  urbanos, posteriormente, a estrutura militarizada se manteve, principalmente por valorizar a disciplina, a hierarquia e a obediência, além da solidariedade corporativa e das rígidas normas internas. Estes mecanismos faziam com que membros livres das classes inferiores se transformassem em soldados da polícia militar e, por isso, armados e uniformizados, favorecessem, mais do que comprometessem, o objetivo geral da ordem e da tranqüilidade pública. Para tal era necessário um rígido controle interno e uma série de punições para impor a obediência destes policiais. Tais punições iam desde algumas horas de marcha forçada com pesadas mochilas nas costas até longos períodos de reclusão e, como medida extrema, a expulsão, a que se recorria somente depois de terem falhado as tentativas de punição. Ao ser contratado, o soldado da polícia militar concordava em submeter-se a essa rígida disciplina e hierarquia militar da corporação reproduzindo-a nas suas relações dentro da instituição (Holloway, 1997). 

Ora, a questão que se coloca é que, embora justificável em regimes monárquicos ou imperiais, a existência de uma polícia “militar” não se adequa aos ideais republicanos. O fato é que, depois da Independência, essa polícias não se extinguem, mas se transformaram em pequenos exércitos estaduais, vindo a ser destituídas desse status pela ditadura que se implantou em 1964, quando passam a ser controladas  pelo Exército. Refeita a ordem democrática, entretanto, as polícias militares sobrevivem à constituição de 1988, ainda aparelhadas com um aparelho judicial próprio, caracterísca exclusiva das Forças Armadas, aonde existe. Tais fatos justificam um olhar mais demorado sobre essas características policiais exóticas, para conhecer-lhes as funções e significados.  

A prática de policiamento ostensivo

No Brasil, cabe às polícias militares, segundo o artigo 144 da Constituição Federal, a prática de policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Nunca se delegou formalmente a esta corporação o poder de prender, fundamental função do policial do mundo moderno. Certamente, em toda sua história, efetuaram numerosas detenções, porém sempre sob o controle civil mais direto (Holloway, 1997). As polícias civis se incumbem das funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as de natureza militar.  

Em princípio, toda atuação do policial militar na rua deve ser registrada em um documento conhecido como Talão de Registro de Ocorrência (TRO). Este contém informações básicas sobre o acontecido (horário, local, pessoas envolvidas). Se o policial militar decidir levar o caso para a delegacia, ele  deverá contar, diante do policial civil, sua versão do ocorrido. A partir daí sua atuação (e, portanto, a interpretação dos fatos) fica submetida à Polícia Civil. A versão apresentada na  delegacia pelo policial militar é considerada provisória, pois a versão definitiva do caso, relatada no Registro de Ocorrência e, posteriormente, no inquérito policial, é a da Polícia Civil. Logo depois de relatada pelo policial militar, a mesma é monopolizada, primeiro, pela Polícia Civil e, depois, pelo sistema judiciário, permitindo que diferentes lógicas de produção da verdade sejam usadas alternada e alternativamente e que, eventualmente, as verdades  por elas produzidas se desqualifiquem umas às outras, o que redunda em verdadeira “dissonância cognitiva”, tanto para os operadores do sistema como para a população em geral. A produção da verdade não é negociada, pois é fruto das representações contraditórias desta verdade: assim, sempre uma tese (posição) perde e a outra ganha, não podendo haver consenso (Kant de Lima, 2008). O policial militar pode, também, ser chamado para relatar sua versão dos fatos em juízo, neste caso como testemunha.  

Esta forma hierarquizada e logicamente conflitante da construção da verdade jurídica - a da polícia, sigilosa e inquisitorial, e a do judiciário, pública e contraditória - faz com que a justiça, exercida de acordo com o que está na lei, seja percebida, pelos policiais, como falha ou insuficiente e, por isso, não confiável. Como mencionado, quando atua em uma ocorrência 
criminal, o policial militar pode comunicar, ou não, tal ocorrência à Polícia Civil. Em pesquisa realizada por Ramos & Musumeci (2004) na cidade do Rio de Janeiro em junhojulho de 2003, objetivando conhecer experiências da população carioca com a polícia, especialmente em situação de abordagem, constatou-se que apenas 1,9% das abordagens realizadas são encaminhadas a uma delegacia. Afirmar isto não significa que todas as vezes que a polícia militar administra um conflito tal evento deva ser criminalizado, porém não podemos deixar de chamar a atenção para o fato de que a polícia interfere em eventos sempre valorizando mais aqueles casos classificados por pela própria polícia militar como criminal. 

Como afirma Guedes (2008) sobre o sistema classificatório das “ocorrências” da Polícia Militar “o valor maior atribuído ao código  001- crimes  fica duplamente evidenciado: primeiro, pelo investimento maior na diferenciação  interna das ocorrências criminosas, impondo-se a atuação diante de comportamentos e situações classificados como criminosos como a principal das funções precípuas da Polícia Militar, na interpretação institucional de um aparato legislador muito amplo e diversificado; segundo, pela sua numeração. Na verdade, em termos de valor, poderíamos dizer que é o primeiro e não apenas o número um”. 

Porém, valorizar mais as ocorrências criminais não significa que tais eventos sejam judicializados por estes policias. Neste contexto, a punição, exercida pelos próprios policiais no momento da ocorrência, seria interpretada por eles como um recurso a essa justiça que se 
faz com as próprias mãos (DaMatta,1983). Assim, a polícia exercita funções judiciárias para punir aqueles que ela percebe como merecedores de castigo, utilizando ideologias e estereótipos mais do que categorias legais para isto (Paixão, 1987; Kant de Lima, 1995); ou, 
assim como já mencionado, pode se omitir de aplicar a lei caso considere que a pessoa não 
mereça ser punida. 

Neste contexto, apesar da legislação impor uma série de restrições à ação policial, ao mesmo tempo lhe confere certa autonomia operacional, justificada pela imprevisibilidade das
ocorrências ou das demandas que norteiam sua ação (Monjardet, 2001). Assim, eles podem,de fato, decidir se deverão, ou não, encaminhar um caso no qual estão atuando à delegacia, pois são eles a autoridade ali presente. Com a possibilidade de selecionar os casos de acordo com o que vai ao encontro aos seus interesses e, especialmente, de acordo com os critérios de atuação que considerarem apropriados à situação específica e aos atores envolvidos nela e, não, de acordo com a lei.  

No entanto, esta não é a estrutura das instituições de controle da sociedade brasileira, pois aqui as polícias devem agir sempre de acordo com as leis e não segundo critérios subjetivos: não há “discretion”, ou oportunidade de agir. Assim, estes policiais estão permanentemente ameaçados de serem “culpabilizados” por erros e omissões que contrariem suas obrigações legais.  Com isso há relevantes conseqüências na eficiência de mecanismos de controle da atividade policial, contribuindo para que os efeitos da punição sobre os agente e autoridades policiais não sejam internalizados positivamente (Kant de Lima, 2008a). 

O Inquérito Policial Militar

A apuração do crime militar ocorre através do Inquérito Policial Militar (IPM). Este inquérito, da mesma forma que o Inquérito Policial, se destina a reunir elementos necessários à apuração de uma infração penal - no caso, um crime militar - e de sua autoria (Código de Processo Penal Militar, Título II, do Livro I, Arts. 9º a 28).  Tem um caráter de instrução provisória, cuja finalidade é a de ministrar elementos necessários à ação penal, ou seja, é peça preparatória, informativa, em que se colhem dados e se realizam diligências, como auto de flagrante, exames periciais, interrogatórios e depoimentos, reconstituições, acareações, etc.  

O IPM pode ser instaurado de duas maneiras diferentes: quando um Comandante de um Batalhão entende que um dos policiais de sua unidade tenha cometido algum crime militar. Ou pode ser instaurado pela Delegacia de Polícia Judiciária Militar (DPJM), que são quatro no Estado do Rio de Janeiro. As DPJM são subordinadas a Corregedoria Interna da Polícia Militar.  Nestas delegacias há um Chefe, normalmente um Coronel da Polícia Militar, e um subchefe, além de policiais militares tanto oficiais quanto praças. Na corregedoria interna da PM ainda há um Centro de Criminalística da Polícia Militar do Rio de Janeiro. 

Quando um IPM é instaurado é designado em ambos os  casos um Policial Militar para proceder o inquérito. Este policial militar, encarregado pelo inquérito, depois de feita a denúncia comparecerá a Auditoria Militar do Estado do Rio de Janeiro como testemunha para confirmar seu relatório no inquérito e esclarecer questões sobre suas investigações. Em muitos casos, acompanhados por mim, estes policiais eram as únicas testemunhas nos casos.  A investigação deverá ser realizada com um prazo de trinta dias, prorrogável por mais trinta, para realização das investigações e ao final é entregue um relatório destas para o Comandante da Unidade ou para o Chefe da Delegacia. Se ficar comprovado que as suspeitas procedem, a denúncia é encaminhada para o Ministério Público da Auditoria Policial Militar.  

O Inquérito Policial Militar tem quatro características, conforme preceitua o Art. 21, do Código de Processo Penal Militar: em primeiro lugar é um procedimento administrativo informativo, destinado a fornecer ao representante do Ministério Público (Promotor de Justiça designado para atuar na Justiça Militar) os elementos de convicção para a ação penal. Possui um caráter formal devendo ser elaborado por escrito. Deve ser sigiloso, pois esta seria a principal característica do inquérito que visa à elucidação dos crimes e a identificação de seus autores. E por fim, inquisitivo, isto é, suas atividades persecutórias devem concentrar-se nas mãos de uma única autoridade, podendo agir por sua própria iniciativa, empreendendo, com discricionariedade, as atividades necessárias ao esclarecimento do crime e da sua autoria. Justamente por ser inquisitivo, não se aplicam ao inquérito os princípios do contraditório e da ampla defesa (se ainda não há uma acusação, não há que se falar em defesa). 

A Justiça Militar do Estado do Rio de Janeiro: Auditoria da Justiça 
Militar e Conselhos de Justiça 

Quando feita a denúncia à Auditoria Militar o destinatário imediato do IPM é o Ministério Público Militar que denunciará, ou não, os acusados. Um Juiz de direito, chamado Juiz Auditor, é responsável pelo Tribunal Militar, competindo a ele processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares. Já ao Conselho de Justiça, sob a presidência do Juiz Auditor, cabe processar e julgar os demais crimes militares (Emenda Constitucional nº 45 de 30 de dezembro de 2004, art. 125 § 3).  

Os crimes podem ser classificados como crimes militares próprios e crimes militares impróprios. Os crimes militares próprios são aqueles relacionados com as atividades institucionais desenvolvidas pelos policiais militares, como insubmissão, deserção, abandono  de posto,  entre outros. Os crimes militares impróprios são aqueles que também possuem a sua previsão no Código Penal, praticado por policial ou bombeiro militar, porém sem estar relacionado com atividades propriamente militares,  como o furto, o roubo, o tráfico de entorpecentes, latrocínio, entre outros. Há ainda aqueles crimes que estão previsto no Código 
Penal e não estão previstos no Código Penal Militar praticados por policiais militares, estes crimes correspondem a maior parte dos crimes denunciados a Auditoria da Justiça Militar do 
Rio de Janeiro, somando desde 2000 85,32% dos casos denunciados. No entanto, estes últimos casos podem ser processados e julgados tanto pela Auditoria da Justiça Militar como 
pela Justiça Comum. 

Como dito acima, compete ao Conselho de Justiça a instrução criminal e o julgamento dos processos em primeira instância da Justiça Militar. Assim como a própria Polícia Militar, que é dividida entre oficiais e praças, estes Conselhos de Justiça também são organizados de maneiras diferentes para estas duas categorias. Nos casos de processo e julgamentos de praças da Polícia Militar (soldados, cabos, sargentos e subtenentes), nos crimes militares definidos em lei, estes Conselhos de Justiça são permanentes, com exceção de casos que envolvam oficiais e praças. Uma vez constituído o conselho permanente de justiça funcionará durante três meses consecutivos, coincidindo com os trimestres do ano civil.  

Já competência de processar e julgar os Oficiais da Polícia Militar (aspirantes a oficial, tenentes, capitães, majores, tenentes-coronéis e coronéis), nos delitos previstos na legislação penal militar, será de um Conselho Especial de Justiça. Nestes casos o conselho é constituído para cada processo e dissolvido após a  conclusão dos trabalhos, reunindo-se novamente a cada ato processual. Os Policiais Militares que integram os Conselhos Especiais serão de posto superior ao acusado ou do mesmo posto e de maior antiguidade. 

Nos casos da acusação abranger Oficial e Praça, também se comporá um Conselho Especial de Justiça para o processamento e julgamento do caso. Esse conselho especial é denominado Conselho de Justificação. 

O Conselho Permanente de Justiça, bem como o Conselho Especial, é composto por um Juiz de Direito, chamado de juiz auditor, membro do Poder Judiciário Estadual, e por quatro Juízes Militares, sorteados entre os Oficiais da ativa da Polícia Militar disponíveis no momento, ambos presididos pelo Juiz de Direito. Os  conselhos se reúnem nos dias de julgamento e quando houver audiências, depoimentos  e oitivas. A sentença é decidida por votação de todos os membros do conselho e a decisão é por maioria. O Juiz Auditor fica encarregado de proferir a sentença em todos os casos da Auditoria da Justiça Militar. Nas audiências e julgamentos o Juiz de Direito senta ao cento da mesa a sua esquerda fica o policial de patente mais alta e que está a mais tempo na corporação, chamado de mais antigo, a direita do juiz senta o segundo mais antigo da corporação, a esquerda do mais antigo senta-se o terceiro mais antigo e a direita da segundo mais antigo senta-se o que está a menos tempo na corporação, chamado de “mais moderno”. Nesta mesma ordem cada policial militar se coloca durante o ritual e no memento de proferir a sentença.  

O rito processual foi descrito pelo juiz auditor do Estado do Rio de Janeiro, em entrevista, como sendo igual ao antigo rito do Código do Processo Penal, se referindo ao Código do Processo Penal antes das mudanças que ocorreram em 2008 (art.396-A da Lei nº 11.719 de 20 de junho de 2008), em que não havia defesa prévia, se iniciando com o interrogatório, sendo seguido pela audiência das testemunhas arrolada com a denúncia, a audiência com as testemunhas arroladas pela defesa, diligências, alegações e, por fim, sentença. Quando são casos em que há um Conselho de Justiça após as alegações finais é marcada uma Audiência de Instrução e Julgamento (AIJ) em que há um julgamento oral, o juiz entrevistado comprara este julgamento a um “mine júri”, somente o diferenciando por ser um julgamento aberto, neste caso, o juiz auditor não se reúne particularmente com os outros quatro juizes militares, como acontece entre os jurados no Tribunal do Júri. 

Depois de dada a sentença a Vara de Execuções Penais fica responsável pela aplicação da pena. E, se o policial militar for condenado à prisão, ele cumprirá sua pena em um Batalhão Especial Prisional.   
Conclusão 

Dissertações de Mestrado (Silva, 2006; Caruso, 2004) tem demonstrado que, na sua atividade de policiamento ostensivo, os policiais militares criam sobre os casos em que atuam um sentido determinado de “justiça”. Nestes casos,  o direito e a obrigação legal são considerados relativos à posição na ordem social. Isto é, o que é “justo” para uns pode não ser, necessariamente, o “justo” para outros (Geertz, 1997).  

São os policiais que têm o poder de “criminar” um fato, interpretando a sua maneira o que é ou não crime (Misse, 1999) e também de “incriminar” um agente, pois são eles que representam uma das autoridades que podem abordar uma pessoa e dizer se ela é ou não suspeita ou criminosa, se ela cumpre ou não a lei. Podendo haver, então, nestes momentos, uma “judicialização da desigualdade” (Kant de Lima; Misse & Miranda, 2000), garantindo assim um tratamento desigual segundo estigmas estabelecidos socialmente e utilizados pela
polícia para nortear seu trabalho. Assim, uma das funções da polícia se caracteriza por ser eminentemente interpretativa, partindo não só dos fatos mas, principalmente, do lugar de cada um na estrutura social e, até mesmo, da área geográfica da cidade (Kant de Lima; Eilbaum e Pires, 2008b), para conceber a correta aplicação das regras de tratamento desigual aos cidadãos, aqui definidos como jurídica e estruturalmente desiguais; trabalhando com uma ética que nem sempre é legal, mas que é legítima (Gonçalves, 2005), punindo aqueles julgados por ela como merecedores de castigo. Esta punição não está necessariamente ligada ao direito e, sim, a um sentimento de cumprimento do dever, interpretado a  partir de ética policial, que serve de fundamento a uma interpretação autônoma da lei. No  entanto, esta ética não é definida de maneira homogênea no meio policial (Kant de Lima, 1995).  

Por isso mesmo, é de relevância crítica a observação dos julgamentos das auditorias, em que esses valores e representações devem se explicitar de diferentes maneiras, em contextos específicos, relativos a casos concretos, que envolvem policiais de diferentes posições na hierarquia institucional, administrando conflitos entre partes juridicamente “iguais“ e “desiguais”, como é o caso, por exemplo, dos oficiais e praças da corporação.  A Polícia Militar, muitas vezes, atua condensando as funções do Sistema de Justiça Criminal, julgando, condenando e punindo no mesmo momento em que está intervindo em uma ocorrência. Essa atitude prática é possibilitada pela imprevisibilidade da ação da Polícia Militar em uma ocorrência. Neste sentido, os critérios baseados em uma ético própria que orientam a atuação da polícia militar na administração de conflitos e seus mecanismos institucionalmente acionados para implementar os valores oficiais ou oficiosos da instituição, 
na ocorrência de transgressões, como os assim denominados “desvios de conduta”.  

Nesse caso, é necessário levar em conta que as representações sobre corrupção policial no Brasil são olhadas de formas diferentes. Em uma versão, pode ser designada como “desvio de conduta” de um policial, colocada dentro de uma ideologia da “maçã podre”, com a descoberta e punição de um erro individual. Esta representação se confronta com uma outra, amplamente divulgada pela mídia, de que haveria uma corrupção generalizada dentro das instituições policiais. Assim, o sistema de controle das atividades policiais, parte do sistema mais amplo de controle da burocracia brasileira, estimula certos comportamentos coletivos que tornam difícil, muitas vezes, tanto para membros, como para não-membros das corporações, identificar o que é e o que não é “corrupção” em casos específicos; além de essa categoria, ela mesma, comportar distintas definições (Kant de Lima, 2008 a). 

Como as polícias estão sempre sobre suspeita de estar negociando o que não devem é justificado sua posição em um patamar “inferior do  processo de elaboração, formalação e decisão das políticas de segurança pública, controladas da perspectiva do topo da pirâmide por aqueles que se encarregam de definir quais sejam a ordem social desejável e possível em um determinado momento da sociedade”(Kant de Lima,  2003:250). Nesta perspectivas os policiais sempre podem ser culpabilizados por seus atos, pois mantém na hierarquia militar a estrita obediência e a negação da autonomia destes policias em sua atuação.  


SABRINA SOUZA DA SILVA é Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense e mestre pela mesma instituição (2006). É Pesquisadora do NUFEP/UFF e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - INCT-InEAC. 


Imagens Google: www.google.com

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