terça-feira, 22 de novembro de 2011

Processos judiciais como fonte de dados: poder e interpretação


(Originalmente este artigo fora publicado em 2005 na revista "Sociologias") 

Fabiana Luci de OliveiraI; Virgínia Ferreira da SilvaII

IDoutora em Ciências Sociais pela UFSCar. Endereço eletrônico:luci_fabiana@yahoo.com 

IIDoutora em Antropologia pela UFRJ. Endereço eletrônico:virginiafes@hotmail.com




RESUMO
O artigo discute, a partir da experiência de pesquisa das autoras com processos criminais e constitucionais, a utilização de processos judiciais como fonte de dados, focalizando em duas implicações metodológicas principais, a questão do poder e a questão da interpretação. Abordando os processos judiciais como narrativas, demonstra-se como é possível discorrer sobre a construção do discurso empreendido por determinados grupos sociais envolvidos nesses processos.
Palavras-chave: processos judiciais, poder, interpretação, narrativa.


 Introdução
Diferentes processos judiciais podem servir a diferentes tipos de pesquisa, sendo possível extrair deles análises variadas sobre grupos sociais diversos. Mas essas diferentes pesquisas têm em comum o fato de trabalharem com a interpretação da palavra escrita a fim de discorrer sobre a construção do discurso empreendido por determinados grupos sociais. Aqui vamos discutir algumas das implicações da utilização de processos judiciais a partir da experiência que tivemos em duas pesquisas diferentes: uma delas trabalha com processos criminais do fim do século XIX,1 a outra, com processos julgados pelo Supremo Tribunal Federal entre o final do século XX e o começo do século XXI.2 No primeiro caso, os grupos sociais focalizados são segmentos populares, imigrantes italianos e negros; no segundo, membros da elite política e jurídica do país. O artigo pretende ater-se à parte metodológica, não se detendo nas particularidades das pesquisas.

Se quisermos classificar o tipo de pesquisa feita a partir da utilização de processos judiciais, a primeira definição é a de pesquisa documental. Processos são documentos históricos e oficiais, e o trabalho com esses documentos traz, ao menos, duas implicações metodológicas: a questão do poder e a da interpretação. Estes questionamentos surgem principalmente quando se trabalha qualitativamente com os dados, quando a preocupação está em buscar a lógica e os códigos que estão informando as palavras para inferir sobre grupos sociais específicos.

Como se trata de um documento oficial, a questão do poder aparece porque o Estado pode ser considerado o verdadeiro produtor do que está escrito, encobrindo a expressão de qualquer grupo social que esteja contida no documento em forma de um depoimento, por exemplo, ou mesmo na argumentação do juiz que, além de membro de um dos poderes do Estado também pode ser visto como membro de uma corporação profissional.3 Já a questão da interpretação surge porque estamos trabalhando com o que está escrito e não, com o acontecimento em si, ou ainda porque não estamos interpretando por meio da observação direta, mas por meio da palavra escrita, e isto é fonte de inúmeros questionamentos, que envolvem a questão da subjetividade.

Antes de entrarmos nestas questões uma observação se faz necessária. O primeiro passo a ser dado em qualquer tipo de pesquisa é a definição precisa do objetivo, das questões que se quer responder. O interesse do investigador deve estar claro, bem discriminado, uma vez que a parte metodológica só poderá fazer sentido, se adequada aos objetivos e preocupações propostos.
Definido o objetivo, dependendo do que a pesquisa propõe, os dados disponíveis podem ser trabalhados de formas diferentes, podem tanto ser quantitativa como qualitativamente analisados. Não se quer aqui ressaltar a superioridade de um ou outro método de pesquisa social, e vale lembrar a frase de Howard Becker, que trata a compreensão científica analogamente às peças de um mosaico. "Diferentes fragmentos contribuem diferentemente para a nossa compreensão: alguns são úteis por sua cor, outros porque realçam os contornos de um objeto. Nenhuma das peças tem uma função maior a cumprir" (Becker, 1993, p. 104).

A análise quantitativa pode propiciar não só uma "quantificação" de ocorrências – como quantidade de absolvições segundo o tipo de crime ou raça (no caso de processos criminais) ou quantidade de processos deferidos de acordo com o objeto da lei questionada ou de acordo com sua origem (no caso dos processos do STF) – como também uma análise mais sofisticada, trazendo à luz importantes relações entre os diversos atores e tópicos envolvidos.
Mas, como os questionamentos apontados anteriormente para discussão referem-se mais ao trabalho qualitativo que pode ser desenvolvido por meio das fontes documentais, será nele que vamos concentrar-nos. Optamos por trabalhar assim com as implicações da análise qualitativa, da análise que busca ações e associações feitas pelos agentes que têm sua fala registrada no processo. A preocupação está, então, na apreensão dos valores, regras e condutas que entram em jogo na luta simbólica em que estão envolvidas as representações do mundo social.

À medida que se atribui importância às interpretações que as pessoas fazem a respeito de um acontecimento ou assunto, isto implica um estudo mais particular, que entre em contato com especificidades, com o que é heterogêneo. Retomando o que foi posto por Bourdieu (1999), aqui se compreende que os sujeitos podem não deter a verdade objetiva de seu comportamento e que o discurso não é propriamente a explicação do comportamento. Mas, conforme está sendo visto, importam mais as interpretações que as pessoas fazem para explicar um comportamento ou posição diante de um fato.

Assim, mesmo que o discurso seja também um aspecto do comportamento a ser explicado, o que certamente poderá ser feito a partir de uma construção teórica, entender a lógica de sua construção pode dizer-nos algo do que o grupo é. Especialmente porque nestes discursos encontramos representações sociais que podem mostrar-nos o modo como o grupo representa a si mesmo. Uma teoria estatística poderia indicar a presença e a circulação de representações, mas certamente pouco indicaria a respeito do que elas são para as pessoas que as empregam.

Pode-se dizer que a percepção do mundo depende em grande parte do que Bourdieu (1990) chama de habitus, ou seja, a internalização da estrutura que a pessoa experimenta e que faz com que as coisas não se apresentem a ela de maneira independente; há um modo de percepção dado pelo saber adquirido, que indica uma disposição incorporada. A verdade acaba sendo dada muito mais na compreensão das coisas do que nelas próprias.

Desta forma, mesmo que os discursos não detenham a verdade objetiva do comportamento, mesmo que não se veja neles a explicação do comportamento, mas sim um comportamento a ser explicado, a análise qualitativa das narrativas dos processos permite evidenciar o modo como as pessoas percebem elas mesmas e os outros, definindo-se e posicionando-se no espaço social. 

Mesmo que o discurso não seja considerado explicação para o comportamento, ele permite a percepção do que está informando a ação e o posicionamento das pessoas enfocadas.

A questão do poder

Processos judiciais são documentos escritos, documentos oficiais, portanto implicam a utilização de uma linguagem específica e esta linguagem implica poder.

A linguagem, na acepção de Bourdieu (1996), é um instrumento de ação e de poder. O discurso, portanto, deve ser compreendido num sistema de trocas simbólicas, no qual dispõe de um valor e de um poder (capital lingüístico) inseparável da posição que o seu locutor ocupa na estrutura social. Para se efetivar, ele supõe a existência de um emissor legítimo que se dirige a um receptor legítimo e "legitimador" deste discurso (Bourdieu, 1996, p. 83).

Nesta perspectiva, pensando a manifestação dos juízes nos processos, pode-se dizer que cada um deles tem o "poder de falar e agir em nome do grupo", tem o poder de produzir o discurso da corporação, pelo qual e no qual ela vai ser reconhecida, expressando, com isto, a ideologia dominante no grupo. Ainda segundo Bourdieu (1990), a linguagem do Direito é a da retórica da autonomia, da impessoalidade, da neutralidade e da universalidade.
O efeito da neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio de construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo. O efeito da universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego (...) de verbos atestivos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado; (...) o uso de indefinidos ("todo o condenado") e do presente intemporal  ou do futuro jurídico  próprios para exprimirem a generalidade e a omnitemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético (por exemplo, "como bom pai de família"); o recurso de fórmulas lapidares e a formas fixas, deixando pouco lugar às variações individuais (Bourdieu, 1990, p. 215-216).
No caso dos processos criminais em que, além da fala do juiz, aparecem os depoimentos, é possível perceber as falas das testemunhas, a forma como constroem e organizam esses depoimentos. Como são pessoas comuns diante de uma instância de poder, pode-se questionar que a Justiça seria a verdadeira produtora das narrativas, não sendo possível apreender, por meio dos discursos das testemunhas, vítimas ou réus, uma lógica que diga respeito a um grupo social específico, já que sua fala estaria sendo filtrada pela Justiça: juízes, promotores e escrivãos. E este é um aspecto bastante enfatizado quando se trabalha com processos jurídicos, de que o que há nesses processos é o Estado falando, e todos os discursos do processo estariam mais propriamente sendo proferidos por ele. Expressariam, desse modo, o Estado exercendo o controle da sociedade por meio da produção de uma verdade. No caso dos processos criminais, a Justiça não constituiria apenas um filtro para a fala dos agentes sociais enfocados, mas seria a própria emissora do que lá está dito (Maggie, 1992, p. 85).

Isto faz com que qualquer grupo social estudado, seja ele popular ou mesmo uma elite constituinte desse Estado, perca a possibilidade de distinção enquanto grupo específico, por estarem eles diante de ou inseridos numa instituição que domina e produz a verdade por meio de seus instrumentos. Deve-se, sem dúvida, considerar a existência de uma ordem dominante que, por meio das elites produtoras de discursos, difunde uma série de representações e imagens amparadas por uma ordenação sociopolítica impressa em leis e instituições.

Mas há o modo de usar esta ordem dominante, o uso que os meios "populares" fazem dela. E, mesmo quando se trata de um grupo inserido no Estado, como é o caso dos ministros do STF, é possível perceber expressões que tentam ir contra essa ordem. Inúmeras vezes os ministros em seus votos procuram posicionar-se contra uma lei vigente ou contra interpretação corrente do direito, a fim de transformá-la. O fato é que os juizes não são atores neutros, ou meros porta-vozes do discurso oficial do Estado. Seus valores influenciam a sua atuação, e esta afirmação é praticamente um consenso, aparecendo até mesmo nos debates que os ministros travam durante os julgamentos, como por exemplo, na Ação direta de Inconstitucionalidade número 171, quando um dos ministros, Francisco Rezek, afirma que "a análise desse problema, com toda a sua possível tecnicalidade, tem essencialmente a ver com a posição ideológica de cada um de nós a respeito do tema substancial" (acórdão da ADIN 171,1993, p. 30).4

Não existe o discurso "uno" do poder, de um lado e, em face dele, um outro contraposto. Os discursos são blocos táticos num campo das correlações de força; "podem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia; podem ao contrário, circular sem mudar de forma entre estratégias opostas"(Foucault, 1985, p. 96-97, apud Maggie, 1992, p. 87).

Ao narrar sua interpretação sobre um caso, parece evidente que o depoente estará usando determinadas associações, valores, preconceitos e estigmas e que isto, de algum modo, estará registrado no processo. E no caso do discurso dos juízes, é possível perceber, ainda por trás dos efeitos da retórica da autonomia, impessoalidade e universalidade, que suas falas expressam um grupo social que também opera uma série de representações próprias e que tem especificidades de acordo com a trajetória de carreira de cada um.

Existe uma pluralidade de discursos, e, se não existe o discurso do poder de um lado, e de outro, seu contraposto, o que existem são discursos não homogêneos – embora alguns venham sendo mais hegemônicos que outros.

Mais hegemônicos porque consideramos que os processos judiciais são produzidos em um campo especifico – o campo jurídico – num espaço especifico – nos tribunais – e que cada agente ocupa uma posição fixada a priori nesse espaço, segundo a distribuição desigual de capital (social, econômico, político, cultural, simbólico). A partir de suas posições, os agentes vão travar lutas concorrenciais entre si, em torno de interesses específicos que caracterizam a área em questão. 

Nessas lutas, o que está em jogo é o monopólio da violência simbólica legítima, ou seja, o poder de impor nomeações, de impor "princípios de visão e de di-visão do mundo" (Bourdieu, 1990).

Embora o juiz seja a figura que vai "ordenar" os diversos discursos, na medida em que tem o poder de posse da palavra, é possível apreender a fala de outros grupos, das partes do processo e, no caso dos processos criminais, das testemunhas, a partir de seus depoimentos. Como já colocado, o que existe é um campo de lutas em movimento, e isto se reflete nas ações e reações dos agentes que lutam pela melhor definição de sua posição (Bourdieu, 1990, p. 82 e 85). As representações estão inseridas nesta interação instituída cotidianamente entre grupos definidos.

A fala dos atores e suas interpretações do evento variam segundo o grupo ao qual a pessoa pertence. Devemos insistir aqui na questão das representações e categorias do discurso porque não há realidade social que seja pré-discursiva. Não há nada que seja anterior às categorias discursivas, e da mesma forma, as representações são anteriores a qualquer coisa que possa existir, sendo, assim, fundamentais para criação dos próprios grupos.

Nas narrativas estão contidas representações sociais, e estas exprimem realidades coletivas, são coisas sociais e produto do pensamento coletivo. Ou seja, não estamos reduzindo as representações sociais à experiência individual, categorias de representação são essencialmente coletivas.

Por outro lado, é importante que não se recuse à consciência individual "o poder de perceber semelhança entre as coisas particulares que ela representa para si", mesmo que seja da sociedade que se tomem emprestado os fatos para, em seguida, projetá-los na representação do mundo que as pessoas fazem (Durkheim, 1978, p. 161 e 165). Representações são aquelas responsáveis por justificar, aos próprios indivíduos que as forjam, suas escolhas e condutas.

Assim, até as representações coletivas mais elevadas só ganham sentido à medida que comandam os atos das pessoas, que elaboram sua construção de mundo. Uma variedade de compreensões de representações se faz presente, a realidade acaba "contraditoriamente construída pelos diferentes grupos". Disto decorre uma série de discursos e práticas diferenciadas (Chartier, 1988, p. 23).

Para Howard Becker (1993), a representação do mundo varia "porque a organização social molda não somente o que é feito, mas também o que as pessoas querem que as representações façam" (Becker, 1993, p. 139). Desta forma, acredita-se que existem modos de representação que serão encarados como "maneiras que as pessoas usam pra contar o que pensam que sabem para outras pessoas que querem sabê-lo" (ibid., p.137). As representações e categorias do discurso são anteriores a qualquer realidade, elas justificam aos próprios indivíduos suas escolhas e condutas.

É provável que o depoente faça uso de associações, estereótipos e valores e, de algum modo, isso estará registrado no processo, assim como o fazem os juizes, apesar de obedecerem, em sua fala, à retórica jurídica.

Portanto, o processo não deve ser visto apenas como expressão do Estado, e este não deve ser visto como emissor dos depoimentos. É necessário considerar os filtros que a justiça impõe, mas não se deve considerar que a narrativa não contenha o modo como determinada pessoa vivencia sua realidade. O processo contém formulações dos diversos segmentos envolvidos e não apenas a do Estado.

Processos como narrativas

Antes de entrarmos nas implicações da interpretação dos processos, gostaríamos de abordar outra importante referência teórico-metodológica, o conceito de narrativa.
Uma referência interessante nesta área é o trabalho de Steinmetz (1992) sobre a relevância das narrativas na formação da classe trabalhadora. Embora o autor aborde a classe trabalhadora e aqui se esteja falando também de um grupo específico da elite (juízes), a maneira pela qual o autor focaliza as narrativas no processo de formação da classe é de grande utilidade para o objetivo aqui em questão.

A primeira definição que o autor dá à narrativa é a de um discurso estruturado em começo, meio e fim, que descreva algum tipo de mudança ou desenvolvimento, permeado por conflitos e explicações causais (Steinmetz, 1992, p. 490). Outras definições oferecidas por Steinmetz são as de Frederic Jameson (Steinmetz, 1992, p. 496), que define narrativa como uma das coordenadas abstratas ou vazias dentro da qual nós viemos a conhecer o mundo e a compreender e ordenar o que chamamos de experiência, e a de Bordwell e Thompson (Steinmetz, 1992, p. 497), definindo narrativa como uma cadeia de eventos em relações de causa e efeito acontecendo no tempo, que começa com uma situação que se desencadeia em uma série de seqüências em que, finalmente, uma nova situação surge e traz um fim à narrativa.

Após definir o que entende por narrativa, o autor afirma que a análise dos aspectos culturais da formação de classe deve focalizar as histórias que as pessoas contam sobre si mesmas, pois a construção dessas histórias é fortemente condicionada pela cultura e pela memória coletiva da classe à qual elas pertencem (Steinmetz, 1992, p. 490-491), sendo, portanto, um reflexo da ideologia desta classe.

Tendo por base uma discussão de Ira Katznelson (apud Steinmetz, 1992, p. 492-493) sobre a formação da classe trabalhadora, a qual ele divide em quatro níveis: 1) estruturação de classe a partir do desenvolvimento do capitalismo; 2) modos de vida, segundo as maneiras pelas quais as pessoas organizam a vida em sociedade; 3) disposições compartilhadas, segundo os valores pelos quais pessoas na mesma posição de classe orientam seu comportamento, sendo orientações ideológicas e discursos compartilhados e 4) ação coletiva, pois as pessoas que compartilham disposições devem necessariamente atuar de maneiras similares, Steinmetz vai propor a quebra do terceiro nível do esquema analítico de Katznelson em três partes distintas: 1) em habitus (definição de Bourdieu), 2) em discursos, alguns dos quais tomam a forma de narrativas e 3) outras práticas. Afirma que discursos e outras práticas são gerados pelo habitus e que retroagem com ele.

O autor propõe a ênfase no aspecto discursivo da formação de classe, na maneira como se estruturam os discursos e no seu conteúdo. Retomando Thompson, afirma que existe uma ligação muito forte entre as narrativas e a ideologia de classe: "Ideologies tend to assume a narrative form: stories are told which justify the exercise of power by those who possess it – situating them within tales that recount the past and anticipate the future".(Thompson, apud Steinmetz, 1992, p. 495). Assim, na análise das narrativas é preciso perguntar como os eventos são definidos, quais os eventos são incluídos na narração e quais são excluídos e que princípios governam o processo de seleção (Steinmetz, 1992, p. 497).

O conceito de narrativa de Steinmetz vem a somar tanto com os de habitus e de campo de Bourdieu, quanto com os demais apresentados até aqui, no sentido de abordar os diversos discursos presentes nos processos judiciais, lembrando que eles estão social e historicamente localizados, podendo revelar a identidade almejada, construída e difundida pelos atores envolvidos nesses processos.

A questão interpretação

A partir do momento em que o que se busca é compreender o discurso situado em um contexto histórico, social e político específico, a antropologia interpretativa também fornece um referencial teórico-metodológico de grande utilidade. Um questionamento muito comum feito aos pesquisadores que trabalham com fontes documentais para uma análise qualitativa de grupos sociais específicos, é que não estamos lidando diretamente com os grupos, com os acontecimentos que os envolvem, não estamos empreendendo a observação direta como acontece na etnografia, mas estamos diante do texto escrito num documento oficial, o que traria implicações diversas, algumas das quais discutimos aqui.
Geertz (1978) afirma que "o homem é um animal amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu assumindo a cultura como sendo essas teias e sua análise (...) como uma ciência interpretativa, à procura do significado" (Geertz, 1978, p. 15). Assim, ele toma o comportamento humano enquanto essencialmente simbólico, consistindo de sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, cabendo ao pesquisador a tarefa de compreendê-los:
Descobrir as estruturas conceptuais que informam os atos de nossos sujeitos, o dito no discurso social, e construir um sistema de análise em cujos termos o que é genérico a essas estruturas, o que pertence a elas porque são o que são, se destacam contra outros determinantes do comportamento humano. Em etnografia o dever da teoria é fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo  isto é, sobre o papel da cultura na vida humana (Geertz, 1978, p. 37).
Lemos o processo, como "lemos a cultura" no sentido de Geertz. Os comportamentos, posições tomadas nos processos, são investigados, procurando-se as "estruturas significantes em termo das quais (...) são produzidos, percebidos e interpretados", sem as quais não fariam o menor sentido (ibid., p. 17). A questão que se coloca aqui é que, no trabalho com narrativas de processos, não se está observando diretamente o fenômeno ou o ato empreendido.

Porém, o próprio Geertz adverte: "o que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria construção das construções de outras pessoas" (ibid., p. 18). Isto quer dizer que sempre que interpretamos aspectos de uma cultura, estamos efetuando uma interpretação que é de segunda ou terceira mão, nas palavras do próprio autor. Trabalhar com narrativas de processos exige que tal argumento seja considerado, pois o próprio registro já é, ele mesmo, uma interpretação.

O fato de o trabalho de campo ser realizado pela leitura dos processos não faz com que a ação que eles têm registrado não possa ser considerada uma ação simbólica, nos termos de Geertz, uma ação a ser interpretada, uma ação a ganhar sentido à medida que se descobre o que elas são para seus agentes. Quer-se atingir o ato de pensamento que produziu o discurso. Tem-se aqui a tarefa da interpretação de "expressões da vida que foram fixadas pela escrita" (Ricoeur, 1990, p. 18). Tal como coloca Geertz, considera-se a análise da cultura "como uma ciência interpretativa, à procura de significado" (Geertz, 1978, p. 15).

As pesquisas se inserem na questão da escrita e da interpretação, já que se quer trabalhar com o que está registrado em processos. Este registro inclui, tal qual na escrita etnográfica, uma tradução da experiência para a forma textual. É certo que a "escrita etnográfica encena uma estratégia específica de autoridade" (Clifford, 1998, p. 21), a qual pode ser largamente discutida, tal como fez James Clifford, mas que aqui não constitui o cerne da questão.
Sabe-se que um autor como Geertz tem a questão da etnografia como central no desenvolvimento de sua argumentação e se acredita que tal argumentação pode ser pensada, sob alguns aspectos, para a análise que se procura empreender com processos. Segundo Clifford, "Geertz, numa série de estimulantes e sutis discussões, adaptou a teoria de Ricoeur ao trabalho de campo antropológico" (Clifford, 1988, p. 39).
Ricoeur afirma que cada palavra utilizada por um agente recorre ao papel seletivo dos contextos: "veiculada por um locutor preciso e um ouvinte que se encontra numa situação particular", em que é posta em jogo "uma atividade de discernimento que se exerce numa permuta concreta de mensagens entre os interlocutores"(Ricoeur, 1990, p. 18-19). Trata-se propriamente da interpretação, que ocorre o tempo todo.

Geertz formula a questão: "como é possível que antropólogos cheguem a conhecer a maneira como um nativo pensa, sente e percebe o mundo?" (Geertz, 1997, p. 86). É preciso procurar e analisar as formas simbólicas (palavras, imagens, comportamentos) em cujos termos as pessoas realmente se representam para si mesmas e para os outros (ibid., p. 90).

Deve-se buscar "com quê" ou "por meio de quê", ou "através de quê" (...), os outros percebem (Geertz, 1997, p. 89). A partir das narrativas dos processos, pode ser buscado o significado para o significante que temos em mão, ou seja, considerando significante o conjunto de atos simbólicos, pretende-se, a partir da análise do discurso social, enquadrá-los de forma inteligível (Geertz,1978, p. 36). Sabe-se que não se chegará a nada diferente de uma construção própria de construções de outras pessoas, é o que a análise dos processos irá permitir.

É importante lembrar que uma das principais considerações a ser feita da antropologia interpretativa é a de que é extremamente necessário manter a análise das formas simbólicas atreladas ao contexto social no qual elas estão inseridas. Não se pode perder de vista que o exercício da interpretação dos significados do discurso depende das posições e do campo de poder em que estão inseridos todos os atores, tanto quem fala (pesquisador) quanto de quem se fala (pesquisado). Por isso, é necessário compreender o resultado da pesquisa como uma interpretação possível dentro de um contexto histórico específico.

As reflexões aqui abordadas contribuem para a constituição de algumas delimitações da pesquisa com processos judiciais, do que se pode buscar por meio deste trabalho de campo e sobre como os dados podem ser utilizados. Pela análise das narrativas dos processos judiciais, pode-se buscar aquilo que é transmitido com a ocorrência de determinados comportamentos e com o discurso sobre esses comportamentos, ou seja, pode-se apreender a lógica que informa tais comportamentos e discursos empreendidos pelos grupos sociais estudados.

Para ver as referências bibliográficas, assim como a fonte do artigo acessar: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-45222005000100010&script=sci_arttext

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Seminário Violência Urbana, Administração Institucional de Conflitos e Metrópoles Brasileiras



Seminário Violência Urbana, Administração Institucional de Conflitos e Metropoles Brasileiras
Começa no próximo dia 7 de novembro no Campus da Praia Vermelha da UFRJ o “Seminário Violência Urbana, Administração Institucional de Conflitos e Metropoles Brasileiras” . O evento reunirá pesquisadores do INCT/InEAC, INCT/Observatório das Metrópoles e do INCT/Violência, Democracia e Segurança Cidadã.
Confira abaixo a programação do evento :
LOCAL: AUDITÓRIO PROF. MANOEL MAURÍCIO DE ALBUQUERQUE
Campus da praia vermelha - Universidade Federal do Rio de Janeiro Av. Pasteur, no 250 – Urca
9h – Abertura
10:00h - Ana Paula Miranda
10:15h - Daniel Simião
10:30h - Antônio Carlos Rafael Barbosa
10:45h - Maria Stella de Amorim
11:00h - Lana Lage.
11:15h - Discussão
12:00h - Almoço
14:00h - Rodrigo Azevedo
14:15h - Roberto Kant de Lima
14:30h – Edinilza Ramos de Souza
14:45h – Discussão
15:15h – Sérgio Adorno
15:30h – Renato Sérgio de Lima
15:45h – Maria Fernanda Tourinho Peres
16:00h - Frederico Castelo Branco
16:15h - Pausa
17:30h - Leonardo Damasceno
17:45h - Jania Perla Diógenes de Aquino
18:00h - Michel Misse
18:45h - Alex Niche Teixeira
19:00h – Maria Stela Grossi Porto
Dia 8
Reunião do comitê gestor
9:30h
Local: Sala Evaristo Moraes (sala109), Prédio do IFCS/UFRJ, Largo de São Francisco de Paula, térreo, centro – Rio de Janeiro.
• Michel Misse (NECVU)
• Alex Niche Teixeira (Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania)
• Maria Stela Grossi (NEVIS)
• Edinilza Ramos de Souza (CLAVES)
• Jania Perla Diógenes de Aquino (LEV)
• Leonardo Damasceno (LEV)
• Renato Sérgio de Lima (FBSP)
• Sérgio Adorno (NEV)


quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A História Esquecida: os Manicômios Judiciários no Brasil





SÉRGIO LUIS CARRARA

Antropólogo, professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Coordenador Geral do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ)



RESUMO
Apoiado em uma perspectiva antropológica, o artigo aborda a história do surgimento dos manicômios judiciários no Brasil na passagem dos séculos XIX-XX. Tal história é analisada tomando como caso exemplar o processo de criação, no Rio de Janeiro, do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, primeira instituição do gênero no país. Indaga como se construiu a ambígua figura do louco-criminoso e a instituição que dele se ocupa, explorando o significado social do crime ou da transgressão a partir dos diversos discursos e práticas que os tomaram como objetos de reflexão e de intervenção. Coloca em foco, de um lado, as discussões teóricas que, na passagem do século, versavam sobre as relações entre criminalidade e loucura; de outro, a prática judicial concreta sobre a qual tais discussões incidiam e que se desenrolava então nos tribunais cariocas.
Palavras-chave: manicômio judiciário; crime; loucura; história.




INTRODUÇÃO
Em alguns países, indivíduos que cometem crimes e são considerados irresponsáveis devido à presença de algum tipo de doença ou perturbação mental são enviados a setores especiais de hospitais psiquiátricos. Em outros, são enviados para setores especiais das prisões. Parece ter sido a Inglaterra o primeiro país a erigir um estabelecimento particularmente destinado para os delinqüentes alienados, a prisão especial de Broadmoor, em 1863.ª Antes dela, tanto na França quanto nos Estados Unidos havia apenas anexos especiais a alguns presídios para a reclusão e tratamento dos delinqüentes loucos ou dos condenados que enlouqueciam nas prisões.

No Brasil, quanto aos chamados "criminosos loucos", o Código Penal de 1890 apenas dizia que eram penalmente irresponsáveis e deviam ser entregues a suas famílias ou internados nos hospícios públicos se assim "exigisse" a segurança dos cidadãos. O arbítrio em cada caso era uma atribuição do juiz. Em 1903, a lei especial para a organização da assistência médico legal a alienados no Distrito Federal, modelo para a organização desses serviços nos diversos estados da União (Dec.1132 de 22/12/1903), estabeleceu que cada estado deveria reunir recursos para a construção de manicômios judiciários e que, enquanto tais estabelecimentos não existissem, deviam ser construídos anexos especiais aos asilos públicos para o seu recolhimento. A partir da legislação de 1903, no bojo das reformas introduzidas no Hospício Nacional de Alienados, localizado no Rio de Janeiro, cria-se uma seção especial para abrigar os "loucos criminosos". Significativamente, a seção foi batizada de "Seção Lombroso", em homenagem ao psiquiatra e antropólogo criminal italiano César Lombroso que, em finais do século XIX, notabilizou-se por desenvolver uma teoria segundo a qual alguns indivíduos, a quem designa de "criminosos natos", nasceriam com uma marcada tendência para o mal. No entanto, a construção de um estabelecimento especial teria ainda que aguardar quase duas décadas para ser concretizar. Somente em 1920 seria lançada a pedra fundamental da nova instituição, oficialmente inaugurada em 1921 (Dec. 14831 de 25/5/1921). Surgia então o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, primeira instituição do gênero no Brasil. Sua direção foi entregue ao médico psiquiatra Heitor Pereira Carrilho, que anteriormente chefiava a Seção Lombroso do Hospício Nacional. Na década de 50, em homenagem ao seu primeiro diretor, a instituição passou a ser chamada de Manicômio Judiciário Heitor Carrilho. Depois de 1986, no bojo das reformas da legislação penal brasileira, passou a ser designado como Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho. No Brasil, é em instituições desse tipo que são mantidos, através de medidas de segurança, os indivíduos que, por sofrerem algum tipo de doença ou distúrbio psíquico, são considerados penalmente irresponsáveis por algum crime ou delito. É para lá que também são enviados os presos que enlouquecem nas prisões.

Os manicômios judiciários são instituições complexas, que conseguem articular, de um lado, duas das realidades mais deprimentes das sociedades modernas - o asilo de alienados e a prisão - e, de outro, dois dos fantasmas mais trágicos que "perseguem" a todos: o criminoso e o louco.

Pesquisei sobre manicômios judiciários em meados dos anos 19801,2, momento em que na seara das ciências sociais ou históricas nada havia sobre o assunto. Desde a primeira visita que fiz então ao manicômio judiciário do Rio de Janeiro (daqui em diante, apenas MJHC), tive a impressão (dessas tão caras à antropologia) de estar entrando em uma instituição híbrida e contraditória, de difícil definição. Além disso, o MJHC me parecia totalmente incapaz de atingir os objetivos terapêuticos a que se propunha. É certo que uma bibliografia já clássica nas ciências sociais vinha revelando que, sob a fachada médica das instituições psiquiátricas, desenrola-se, na verdade, uma prática secular de contenção, moralização e disciplinarização de indivíduos socialmente desviantes. De certo modo, denunciava-se assim a "prisão" que existiria atrás de cada hospício. Nesse sentido, o trabalho instaurador de Erving Goffman3 chegou mesmo a mostrar que uma única estrutura de relações sociais poderia ser encontrada tanto em presídios quanto em manicômios, ambos podendo ser bem compreendidos através de um único conceito: o de instituição total. No entanto, se o manicômio e a prisão são verdadeiramente "espécies" de um mesmo "gênero", como o demonstrou Goffman, o MJHC chamava minha atenção justamente para a diferença que existe entre as duas "espécies"; e isso por sobrepô-las em um mesmo espaço social. O MJHC se caracterizava fundamentalmente por ser ao mesmo tempo um espaço prisional e asilar, penitenciário e hospitalar.

Prenhe de conseqüências práticas, a diferença entre o asilo e a prisão, visível através do MJHC, está amplamente ancorada nas definições opostas que mantemos a respeito do estatuto jurídico-moral dos habitantes de cada uma das instituições. Para a prisão enviamos culpados; o hospital ou hospício recebe inocentes. Sem dúvida, a moderna percepção da loucura e do crime é fruto de um processo que, embora tortuoso, já dura mais de dois séculos. Através desse processo, em que se empenharam médicos, juristas e outros profissionais, generalizou-se a idéia de que existe uma diferença essencial entre as transgressões realizadas por sujeitos considerados "alienados" - que não teriam controle nem consciência de suas ações - e aquelas provenientes de indivíduos considerados "normais" - que teriam controle sobre suas ações e plena consciência de seu caráter delinqüente ou desviante. Ao nível do senso comum, julgo ser bastante arraigada a idéia de que o crime se opõe à loucura como a culpa à inocência. Do mesmo modo, a idéia de "pena" e a idéia de "tratamento" ainda se excluem, pois, apesar de todas as oscilações por que já passou, a prisão, como reação penal por excelência, nunca deixou de significar explicitamente castigo ou expiação de uma culpa.

Assim, a despeito de infinitas nuances, continuamos a distinguir claramente os atos desviantes que seriam frutos da loucura dos atos desviantes que seriam fruto da delinqüência e os apreendemos através de conjuntos de representações que se opõem em relação ao estatuto de sujeito responsável que atribuem ou não aos transgressores. Frente a tais representações, o MJHC, instituição destinada a loucos-criminosos, não deixava de parecer fundado sobre uma contradição. A instituição apresentava a ambivalência como marca distintiva e a ambigüidade como espécie (se os psiquiatras me permitem o uso da expressão) de "defeito constitucional". Através da legislação e do tratamento dispensado aos loucos-criminosos, foi possível ainda perceber que essa ambivalência poderia ser detectada em vários níveis. Uma linha, a um só tempo lógica e sociológica, parecia atravessar toda a instituição, marcando desde a legislação que a suportava até a identidade auto-atribuída dos internos e das equipes de profissionais encarregadas do estabelecimento. Os internos referiam-se a si mesmos como "presos" e não como "pacientes" e o tempo mínimo de internação ainda era medido em relação à pena que o individuo receberia caso tivesse sido considerado são e responsável.

No MJHC, lidava com a existência de duas definições diferentes e, em certo nível, contraditórias, a respeito de um mesmo espaço social, o hospício-prisão. A existência dessas duas definições e de sua articulação problemática se revelava ao menos em dois planos: no plano legal e no institucional. É importante ressaltar ainda que essa "fronteira" que perpassava todo o MJHC era em si mesma inglória. Não distinguia o "sagrado" do "profano", o "positivo" do "negativo", o que seria melhor do que seria pior. Os internos se viam então colocados frente a uma estranha encruzilhada: inocentes, mas tutelados e sem direitos de um lado; culpados, mas sujeitos de certos direitos e deveres de outro. Um período de interdição menor, mas que podia se estender por toda a vida, de um lado, um período de interdição legal maior mas com saída certa, de outro.

O que se encontrava, tanto na legislação referente aos loucos-criminosos quanto no destino social que lhes continua sendo reservado, era justamente a superposição complexa de dois modelos de intervenção social: omodelo jurídico-punitivo e o modelo psiquiátrico-terapêutico. Superposição e não justaposição, pois, o modelo jurídico-punitivo parecia englobar o modelo psiquiátrico-terapêutico, impondo limites mais ou menos precisos ao poder de intervenção dos médicos e demais técnicos.

Dessa maneira, comecei a pensar o manicômio judiciário como uma "solução final" de um conflito histórico de competências, de projetos e de representações sociais mais abrangentes e não, simplesmente, como um acordo entre funções sociais complementares. Genericamente, o que transformava o MJHC em um espaço social paradoxal era justamente o fato de combinar dois conjuntos de representações e de práticas sociais que se fundam em concepções distintas e opostas sobre a pessoa humana sem que nenhum deles prevaleça plenamente.

De um lado, há a versão que poderia ser chamada jurídico-racionalista e que vê o indivíduo como sujeito de direitos e de deveres, capaz de adaptar livremente seu comportamento às leis e normas sociais, capaz de escolher transgredi-las ou respeitá-las, capaz, enfim, de ser moral e penalmente responsabilizado por suas ações. De outro lado, há a versão que poderia ser denominada psicológico-determinista, que vê o indivíduo (principalmente o indivíduo alienado) não enquanto sujeito, mas enquanto objeto de seus impulsos, pulsões, fobias, paixões, desejos etc. Nessa última versão, as estruturas determinantes do comportamento, estando aquém da consciência e da vontade, não permitem que o indivíduo seja moralmente responsabilizado no sentido do modelo anterior, não sendo, portanto, passível de punição.

Por colocá-los muito próximos, combinando-os de maneira contraditória, os manicômios judiciários não deixavam de chamar a atenção para a existência, em nossa sociedade, desses dois códigos incompatíveis de compreensão das ações humanas e da responsabilidade individual. Ainda sob outras formas, tais códigos estão presentes em nossas avaliações mais cotidianas e são atualizados segundo situações muito concretas. Vivemos em sociedades que conseguiram (e seria muito importante saber como concretamente o fizeram) articular duas concepções conflitantes da pessoa humana: uma é moral e axiomática; a outra é "objetiva" e objetivante - científica. Aprendemos a lidar com esses dois códigos distintos e, a partir deles, qualquer comportamento pode ser apreendido tanto em termos morais (culpado versus não culpado; responsável versus irresponsável) quanto em termos médico-psicológicos, ou seja, como resultante de doenças, desequilíbrios nervosos, traumas, socialização problemática etc.

O que e propus fazer foi indagar a partir de que relações significativas entre representações e práticas que se ocupam da transgressão às normas e valores sociais foi possível surgir a figura do louco-criminoso e a instituição que dele se ocupa?b Tal enunciado me parecia mais satisfatório porque colocava em foco o que eu julgava ser fundamental para a compreensão do surgimento do manicômio judiciário, ou seja, a maneira como se constituiu o significado social do crime ou da transgressão a partir dos diversos discursos e práticas que os tomaram enquanto objetos de reflexão e de intervenção, particularmente do discurso e prática da medicina mental.

É sem dúvida importante perceber como a construção de um manicômio judiciário em particular foi encaminhada no Brasil, quais os grupos profissionais que lutavam por ele, quais governos foram mais sensíveis aos seus apelos etc. Penso, entretanto, que isso só teria pleno sentido depois de ser revelado como tal instituição pode ter se tornado algo pensável e defensável. Parece-me que a generalidade da minha primeira abordagem é em si mesma justificável, mas ela ainda encontrava apoio no fato mesmo de tais asilos prisões terem surgido quase simultaneamente em diferentes países. Essa simultaneidade levava a supor que seu surgimento esteve largamente relacionado a processos sociais mais amplos, ou que não se restringiam a questões propriamente nacionais. Dessa forma, escolhi pensar o aparecimento dessa estrutura institucional peculiar relacionando-a a "variáveis" sociológicas mais genéricas. Basicamente, as "variáveis" escolhidas poderiam ser dispostas em dois planos: de um lado, o plano das discussões teóricas que, na passagem do século, versavam sobre as relações entre criminalidade e loucura; de outro, o plano da prática judicial concreta sobre a qual tais discussões incidiam e que se desenrolava então nos tribunais.

A QUESTÃO DO CRIME NA PASSAGEM DOS SÉCULOS XIX-XX
O período entre final do século XIX e início do século passado apresenta como marca característica o surgimento, em vários países ocidentais, de uma ampla e sistemática reflexão em torno do crime e dos criminosos que não se continha apenas nos limites do chamado "mundo científico". Nas grandes cidades, ela alcançava as ruas e os lares através de uma incipiente mas promissora imprensa popular, ávida de novidades e de escândalos4, e de um novo gênero literário, o romance policial, filho legítimo desse tipo de imprensa.5,6

Antes de mais nada, é importante lembrar do aumento significativo do número de crimes nas grandes metrópoles da passagem do século. Tal aumento é geralmente explicado pela intensificação do processo de urbanização e industrialização a que tais cidades assistem. Ao que parece, essa intensificação não se restringiu apenas às grandes metrópoles dos países mais desenvolvidos (onde Jack, o estripador, zombava da polícia), mas também, guardadas as proporções e especificidades, às dos países periféricos. Para o Brasil, trabalhos importantes foram feitos explorando a relação entre as profundas alterações sociais que experimentam as suas grandes cidades dabelle époque, especificamente Rio de Janeiro7 e São Paulo8, e o aumento das taxas de criminalidade e do interesse em torno da questão. Aumento populacional intenso, liberação não planejada da mão-de-obra escrava, incorporação de grandes contingentes de imigrantes nacionais e estrangeiros, industrialização, formação de um mercado de trabalho competitivo em moldes capitalistas, modernização da estrutura urbana e mudanças significativas no estilo de vida são apenas alguns dos elementos apontados mais freqüentemente como fontes de agudização dos conflitos sociais naquele momento.

Entretanto, para além das tensões sociais inerentes a um acelerado processo de urbanização e industrialização, as grandes cidades do final do século XIX assistem ainda à emergência de um outro fenômeno social que não pode ser desprezado e que se apresenta como efeito da formação de um meio delinqüencial fechado, recortado principalmente entre infratores das classes populares urbanas. Como já apontou Michel Foucault9, a circunscrição de tal meio foi em grande parte conseqüência da prática prisional que se instalou no coração dos sistemas penais a partir do final do século XVIII.c Através da prisão, o "crime" se organiza, se especializa e se profissionaliza no meio urbano, e a nova feição que adquire aparece marcada pelo fenômeno da reincidência.10 Desligado de seu meio social de origem, dados os longos períodos de reclusão a que é submetido, e preso nos jogos da marginalização, começava a se desenhar para o criminoso uma trajetória social sem retorno. Foi, sem dúvida, frente a uma tal realidade sociológica que se tornou possível conceber o criminoso como um "tipo natural"; concepção que selava a irreversibilidade de uma trajetória delinqüente no momento mesmo em que passava a percebê-la enquanto manifestação de uma natureza individual anômala, de um psiquismo perturbado pela doença. Assim a reflexão em torno da existência de um "tipo natural" criminoso que emergia na segunda metade do século XIX, não se tecia então apenas com os fios do imaginário, pois se apoiava em parte sobre um processo histórico de constituição do criminoso enquanto um "tipo social".

Compreender por que o crime se colocou naquele momento como objeto privilegiado de reflexão é também visualizar a crise pela qual passava o liberalismo, quer enquanto doutrina política com determinada fundamentação filosófica - a filosofia das Luzes, quer enquanto modo específico de organização social e política. Nesse sentido, refletir sobre o crime era também refletir sobre o que se julgava ser os excessos do individualismo, alimentado pela doutrina liberal. Tais excessos eram identificados tanto nas "românticas" transgressões de indivíduos criminosos ou "malditos" (como Byron, Rimbaud, Álvares de Azevedo, De Quincey, entre outros), quanto nas transgressões político-ideológicas também "românticas" de anarquistas, comunistas ou socialistas utópicos. Através do crime, juristas, criminalistas, criminólogos, antropólogos criminais, médicos-legistas, psiquiatras, todos fortemente influenciados por doutrinas positivistas ou cientificistas, discutiam de fato uma questão política maior: os limites "reais" e necessários da liberdade individual, que, vista como excessivamente protegida nas sociedades liberais, era apontada como causa de agitações sociais ou, ao menos, como empecilho à sua contenção.

Assim, através das discussões em torno do crime, tratava-se não somente de atacar a ordem política e jurídica liberal, mas também de consolidar uma nova concepção do homem e de sua relação com a sociedade, amplamente ancorada em formulações positivistas e cientificistas.

No Brasil, como bem apontou Schwarz11, apesar de negarem frontalmente o clientelismo e a lógica do favor que caracterizavam as relações sócio-políticas tradicionais, os princípios liberais que foram mais fortemente incorporados às instituições nacionais com o advento da República de 1889, em vez de destruí-los, a eles se incorporaram em uma espécie de "coexistência estabilizada". Tal coexistência, como sabemos, deu origem a "instituições" tão peculiares quanto o voto de cabresto ou o uso da lei como momento supremo de arbítrio ("aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei", segundo conhecido ditado popular). Entretanto, se o liberalismo assumiu entre nós uma "cor local", ele ainda nos chegou acompanhado de uma "bula" que apontava seus vários "efeitos colaterais" e "contra-indicações". As instituições liberais nasceram, entre nós, sob o fogo cerrado de "positivistas", "evolucionistas" e "socialistas" de vários matizes. Todos eles, de uma maneira ou de outra, denunciavam as bases "metafísicas" do liberalismo e advogavam que a "boa lei" não deveria pretender apoiar-se sobre princípios abstratos, eternos e universais como queria o jusnaturalismo, mas sim nas necessidades objetivas de cada povo ou nação, nas particularidades cientificamente demonstradas da realidade sobre a qual ela pretendia legislar. Igualdade, liberdade etc. seriam apenas palavras vazias se não correspondessem a qualquer realidade verificável.

Assim, embora o contexto fosse diferente, também aqui, como nos países europeus, através das discussões em torno do crime e da desigualdade cientificamente demonstrável que o crime parecia tematizar, surgiram as mesmas críticas ao liberalismo e à concepção de homem veiculada pelo Iluminismo. Formuladas no bojo de sistemas de pensamento antiliberais, tais críticas tiveram ao que parece ampla aceitação na elite intelectual brasileira daquele momento, contribuindo para a formação das bases de um pensamento autoritário cuja relevância já tem sido bastante evidenciada há alguns anos. É dentro desse amplo quadro que devem ser compreendidas as relações significativas que, na passagem do século, forjaram-se em torno do crime e da loucura.

Enquanto objeto da psiquiatria, o crime será visto em algumas de suas formas como sintoma de uma doença mental: comportamento referido a uma situação excepcional por que passariam alguns indivíduos durante certos períodos de suas vidas. É importante salientar que tal concepção do crime-doença não deixava de revelar uma avaliação "otimista" do ser humano, que naturalmente bom, apenas eventualmente teria sua natureza pervertida por causas ou razões externas, contingentes, inesperadas. Já enquanto objeto de uma antropologia, o crime (ou seus referentes mais abstratos: a maldade, a ferocidade, a impulsividade etc.) será pensado como espécie deatributo peculiar a certas naturezas humanas. Através desse crime-atributo, uma espécie de reflexão ontológica irá equacionar comportamentos individuais desviantes a configurações psicossomáticas particulares e hereditariamente adquiridas. Em fins do século XIX, os caminhos indicados pelas entradas abertas pela psiquiatria e pela antropologia criminal se cruzam sobre um espaço que é ao mesmo tempo médico e legal. Desse cruzamento, surgirão os manicômios judiciários e outras instituições do gênero.

AS NOVAS FIGURAS DO MAL: OS MONOMANÍACOS, OS DEGENERADOS E OS CRIMINOSOS NATOS
Para a compreensão dos impasses que se colocavam na prática judicial quando se levantava suspeitas sobre a sanidade mental do acusado e também do surgimento dos manicômios judiciários, parece fundamental a apresentação do significado de basicamente três categorias: "monomania", "degeneração" e "criminalidade nata". Tais categorias articulavam diferentemente a transgressão moral nos termos da doença ou da anomalia, colocando alguns criminosos ora como objetos da patologia, ora como objetos da teratologia.

É importante salientar que o aparecimento da noção de monomania, visceralmente implicada na interpretação psiquiátrica de certos crimes, teve uma importância enorme na própria história da psiquiatria e de seu objeto. Foi através dela que se forjou a concepção da loucura enquanto alienação mental, ou seja, enquanto doença que não se caracterizava necessariamente pelo delírio. Como aponta Michel Foucault12, foi através da monomania, principalmente da monomania instintiva, que se pode visualizar com clareza em que se transformou a loucura no correr do século XIX: um "mal" que implicou a "objetificação" do homem e que passou, nas palavras do autor, a "...estendê-lo finalmente ao nível de uma natureza pura e simples, ao nível das coisas..." (p. 516).

Contudo, na segunda metade do século XIX a noção de monomania receberia golpes decisivos no interior do campo psiquiátrico, quando aparece a teoria da degeneração, esboçada primeiramente pelo médico francês A. Morel. Foi então que começaram a surgir, no âmbito das discussões sobre o crime, "os degenerados". Estes seres, embora continuassem a equacionar o crime nos jogos da sanidade/insanidade mental, permitiam que se esboçasse uma primeira "criminologia", na forma de uma reflexão médica específica sobre o crime, uma vez que, segundo a teoria da degeneração, qualquer ato criminoso podia ser lido como um sintoma de doença mental ou de instabilidade psíquica. Com o aparecimento dos degenerados, os médicos começaram a questionar os fundamentos do direito penal liberal. É importante salientar, entretanto, que a expressão monomania continuou a ser utilizada pelos médicos durante todo o século XIX e não desapareceu com o surgimento das teorizações em torno da degeneração. O que acontece é que os indivíduos antes considerados monomaníacos (impulsivos e loucos raciocinantes ou loucos morais) são, a partir da segunda metade do século XIX, classificados preferencialmente como degenerados.

Degeneração e monomania apresentam-se, portanto, como noções concorrentes, pretendendo abordar diferentemente um mesmo conjunto de comportamentos: transgressões aparentemente irracionais onde o delírio não está em causa e que partem de indivíduos cuja situação doentia parece ser um estado permanente, indicando uma espécie de doença congênita e incurável. A doutrina da degeneração irá enfatizar, sobretudo, essa característica inata e constitutiva de algumas perturbações mentais já tematizada incipientemente pela monomania, permitindo que a discussão psiquiátrica oscile entre uma reflexão sobre as doenças que podem acometer os homens, tornando-os infelizes, e uma reflexão sobre a própria natureza humana e sobre como os homens podem se tornar a causa da infelicidade uns dos outros.

O comportamento criminoso - ao menos nos casos em que se percebia uma "tendência precoce para o mal" - encontrava seu espaço entre as manifestações degenerativas da espécie humana. Na verdade, a doutrina da degeneração fez com que o crime, em si mesmo, pudesse se tornar objeto de uma abordagem psicopatológica, tornando possível uma primeira "criminologia", como dito anteriormente.

Ao longo do século XIX, a psiquiatria expandiu suas categorias nosológicas e, conseqüentemente, abarcou nos quadros da alienação mental um número crescente de comportamentos desviantes, que até então tinham sido apenas objeto da moral, da ética, da lei. Através de categorias como as de monomania ou degeneração, vários crimes começaram a ser compreendidos medicamente, e já se percebia inclusive uma zona fronteiriça, onde crime e loucura se confundiam, ou melhor, onde o crime podia ser interpretado como resultante de um psiquismo perturbado ou anômalo. Através da degeneração, o crime como desvio moral pôde também ser compreendido enquanto disfunção orgânica. Entretanto, o foco da reflexão médica não era propriamente o crime, nem os criminosos eram seu objeto de intervenção privilegiado. Ao que parece, a psiquiatria somente podia abordar o crime sob pena de desqualificá-lo enquanto tal, para compreendê-lo como sintoma de uma moléstia mental qualquer.

A naturalização do crime fora da oposição sanidade/insanidade, bem como o estabelecimento de suas conseqüências para a prática penal e penitenciária, só se realizarão plena e sistematicamente através de um discurso médico-legal embasado nas formulações de uma disciplina que, nas últimas décadas do século XIX, reivindicava foros de ciência natural, positiva, legítima: a antropologia criminal. É justamente no âmbito desse pensamento que se forjarão as críticas mais radicais ao sistema jurídico-penal característico das sociedades liberais.d Tal sistema, como se sabe, orientava-se por princípios jurídicos estabelecidos no seio do pensamento iluminista e que foram sistematizados pelo italiano Cesare Beccaria em seu famoso livro Dos delitos e das penas, publicado em 1767. As bases do chamado direito clássico assentavam-se sobre três postulados fundamentais13,14. O primeiro estabelecia a igualdade de todos os homens perante a lei. O segundo propunha que a severidade da pena deveria se pautar exclusivamente pela gravidade do delito cometido. Finalmente, o terceiro dizia que a lei penal não poderia ser retroativa, ou seja, que não haveria crime sem lei anterior que o previsse. Todos esses princípios serão colocados em xeque a partir das formulações da antropologia criminal.15,16

Constituída pelas "descobertas" de um outro italiano, o médico psiquiatra Cesare Lombroso (1835-1909), a antropologia criminal consistiu na aplicação das técnicas da antropometria e da cranioscopia, desenvolvidas anteriormente por médicos como Broca e Gall, ao exame dos corpos dos criminosos e no tratamento estatístico dos resultados obtidos por tais técnicas. Os frutos desses procedimentos, interpretados de uma maneira que logo foi considerada pouco metódica e não-científica, conduziam à conclusão de que alguns criminosos podiam ser considerados uma variação singular do gênero humano, uma classe antropologicamente distinta no interior do conjunto dos seres humanos. O que se tentava demonstrar era a existência de um Homo criminalis, de um "criminoso nato".

Em finais do século XIX, as teorias em torno da monomania, da degeneração e da criminalidade nata passam a ser utilizadas nos tribunais para classificar certos criminosos, colocando sérios problemas ao andamento de processos e julgamentos. Se o funcionamento do sistema jurídico penal liberal assentava-se na possibilidade de distinguir claramente loucos de sãos, responsáveis de irresponsáveis, e na existência do hospício, como instituição complementar à prisão, os médicos passavam agora a manipular categorias diagnósticas que, ou supunham um contínuo entre sanidade e loucura (como era o caso da degeneração), ou (como era o caso dos criminosos nato) uma concepção biodeterminista da pessoa humana que comprometia o próprio julgamento de responsabilidade, uma vez que os indivíduos passam, em seus termos, a serem considerados naturalmente bons ou maus. Todos, em certo sentido, seríamos irresponsáveis, movidos por nossas tendências naturais. Como queriam os adeptos das novas teorias sobre o crime e os criminosos, todo o sistema penal liberal devia ser reformulado, com a abolição dos próprios tribunais, com a substituição de juízes por técnicos, com a adoção de medidas de contenção e recuperação de duração indeterminada etc.

Um exemplo do tipo de confusão que a incorporação dessas categorias na prática judicial concreta é o caso que analisei mais aprofundadamente em outro momento, envolvendo o assassinato, em 1896, do Comendador Belarmino B. P. de Melo, que, aos setenta anos de idade, foi vítima do jovem Custódio Alves Serrão. Belarmino era amigo íntimo do pai do assassino e, depois da morte dele, tornou-se tutor dos dois irmãos de Custódio: do irmão mais velho, porque ele se encontrava internado no Hospício Nacional de Alienados, e da irmã mais nova, que ainda não havia alcançado a maioridade.

O caso é tão singular que, a primeira vista, beira a ficção. O próprio nome do assassino - Custódio - parecia fazer alusão à discussão que seu ato desencadearia. A história de vida da vítima misturava-se à história das instituições penais, uma vez que Belarmino havia sido o chefe da Casa de Correção da Corte e havia se notabilizado pela defesa da introdução do sistema de isolamento celular nas prisões brasileiras. Além disso, Custódio afirmava que matara Belarmino porque ele o acusava de ser louco e ameaçava interná-lo no Hospício Nacional, junto do irmão.

Frente a tudo isso, logo depois de sua prisão, dois médicos-legistas da polícia, foram chamados para avaliar o caso e classificaram Custódio como monomaníaco, atingido pela monomania das perseguições, aconselhando seu internamento no Hospício Nacional. Depois de um curto período de internação no Hospício Nacional, Custódio foge e se reapresenta à polícia, exigindo que fosse respeitado o seu direito de ser julgado pelo crime que havia cometido. Além disso, faz duras críticas ao Hospício, desencadeando uma pesada campanha contra o diretor do estabelecimento, o Dr. Teixeira Brandão. Um dos nomes mais notáveis da psiquiatria de então, Brandão era o primeiro catedrático de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e o responsável pela expulsão das irmãs de caridade que controlaram o Hospício Nacional até a proclamação da República. Depois da fuga, Custódio foi reconduzido pela polícia ao hospício. Depois do período de observação, o médico da instituição o diagnostica como degenerado, dizendo com isso, que embora não fosse responsável por suas ações, Custódio não era propriamente um doente e sim o portador de um defeito constitucional que o predispunha ao crime. Frente a isso, Teixeira Brandão recusa-se a assinar a internação, dizendo que para tais casos o ideal seria um manicômio-criminal. Como tal instituição ainda não existia, o psiquiatra reenvia Custódio à polícia para que o processo criminal fosse retomado. Novos médicos são chamados a examiná-lo e o diagnóstico de degeneração (ou criminalidade nata) é mantido. Dadas as posições de Brandão, o famoso professor de medicina-legal da Faculdade da Bahia, Raimundo Nina Rodrigues, entra na disputa. Para ele, era incompreensível que, frente ao fato de inexistir um manicômio judiciário, Teixeira Brandão aceitasse a condenação e punição de alguém que ele mesmo sabia ser um degenerado e, portanto, um irresponsável. Custódio é julgado e, considerado irresponsável penalmente, absolvido. Muito provavelmente acabou em liberdade, uma vez que os psiquiatras do Hospício Nacional, na ausência de um manicômio judiciário, recusavam-se a acolher tais casos.

DEGENERADOS, CRIMINOSOS NATOS E O SURGIMENTO DO PRIMEIRO MANICÔMIO JUDICIÁRIO BRASILEIRO
Parece-me já estar claro, o tipo de problema que a incidência de categorias como a de 
"degenerado" ou "criminoso nato", ou melhor, que a incidência da noção biodeterminista da pessoa humana que elas expressavam, impunha às formas socialmente previstas para a contenção e repressão dos transgressores. Ao nível da prática judiciária, as contradições e impasses vão se acumulando ao longo das duas primeiras décadas do século XX. Casos mais ou menos escandalosos vão surgindo e motivando psiquiatras e magistrados a lutar em prol da construção de um asilo criminal, que começa a ser considerado amplamente a única saída possível para o impasse que opunha médicos e juristas, e, às vezes, psiquiatras e médico-legistas. É sem dúvida significativo que, alguns anos após o caso Serrão, apareça na legislação referente à organização da assistência a alienados no Brasil (Dec. nº1132 de 22/12/1903), amplamente influenciada por Teixeira Brandão e Juliano Moreira, seu sucessor na direção do Hospício Nacional, a obrigatoriedade de construção de manicômios judiciários em cada estado, ou, na sua impossibilidade imediata, da circunscrição de pavilhões especialmente destinados aos loucos-criminosos nos hospícios públicos existentes. Foi depois dessa lei que, instituiu-se a Seção Lombroso do Hospício Nacional, especialmente destinada ao recolhimento dos loucos-criminosos. Homenagem ao criador da teoria dos criminosos-natos, o nome da do serviço atesta o fato de que era para o abrigo de tais figuras que a seção se destinava. Porém, o problema não estava ainda resolvido. Dois outros acontecimentos viriam precipitar o surgimento de um manicômio judiciário entre nós, engajando mais fortemente a imprensa e os poderes públicos.

O primeiro deles ocorreu em 1919, quando um outro "degenerado", um taquígrafo do senado, mata D. Clarice Índio do Brasil, mulher de um Senador da República e figura conhecida da alta sociedade carioca17. A possibilidade de o assassino vir a ser absolvido faz com que a própria imprensa se engajasse intensamente na luta pela criação de um manicômio judiciário. Porém, em oposição aos médicos, os jornalistas, ao defenderem a construção do estabelecimento, não enfatizavam o seu caráter terapêutico ou humanitário; antes, apontavam sua urgente necessidade para uma repressão mais eficaz aos delinqüentes. Os termos em que a discussão aparece nos jornais atestam de forma clara a ambigüidade da percepção social que se construía em torno dessas estranhas figuras, meio inocentes e meio culpadas, que eram os degenerados, os criminosos natos, os anômalos morais enfim.

Logo após o assassinato de Clarice, o governo federal começaria a mobilizar-se para fundar o novo estabelecimento e ainda em 1919 o congresso votaria crédito para sua construção. Talvez não tivesse sido erguido tão prontamente sem a interveniência do segundo acontecimento, que consistiu em uma séria rebelião ocorrida a 27 de Janeiro de 1920 na Seção Lombroso do Hospício Nacional, onde segundo os jornais, estariam internados 41 "loucos da pior espécie", "gente perigosa" "sempre com o intuito do mal" (JCOPO Jornal, 28/01/1920). Liderados por Roberto Duque Estrada Godefroy, alcoólatra e preso diversas vezes por vadiagem e pequenas agressões, os internos da Seção Lombroso conseguiram sair de suas celas, agrediram funcionários do hospício e atearam fogo nos colchões, produzindo enorme comoção.

A campanha pela construção de um manicômio judiciário na capital tem efeitos positivos e imediatos. A 21 de abril de 1920 - dia que entre nós é dedicado à luta pela liberdade política - era lançada, nos fundos da Casa de Correção, na Rua Frei Caneca, a pedra fundamental do primeiro asilo criminal brasileiro, que seria inaugurado a 30 de maio do ano seguinte. Cumpria-se assim, como expressou um "desvanecido" Juliano Moreira em seu discurso, "uma velha aspiração não só dos alienistas nacionais, mas ainda dos jurisconsultos e magistrados desse país, que de há muito viam conosco a inadiabilidade desta construção" (JC, 22/04/1920, 2ª p.).

Frente a uma concepção cientificista da pessoa humana, da qual o criminoso nato não era senão um dos fetiches, havia necessidade, como bem defendiam os membros da Escola Positiva de Direito Penal, de mudanças profundas, radicais e globais das leis, dos procedimentos processuais e das instituições penitenciárias. Desse ponto de vista, o MJ não parece ter sido apenas uma solução adequada ao destino a ser dado a determinados tipos de alienados, mas também uma maneira de conter em limites mais ou menos precisos os efeitos de um conflito entre ciência e moral, cuja extensão ameaçava as instituições liberais como um todo. Para os que consideravam o criminoso nato uma idéia absurda, um atentado contra a liberdade individual ou um expediente para inocentar criminosos, o manicômio judiciário, por não deixar de ser uma prisão, parecia solução satisfatória. Para os defensores da idéia de criminoso nato, para os quais a liberdade humana era apenas mais uma frágil e enganadora ilusão, ele não deixava de ser uma casa de tratamento e regeneração, onde, à revelia do direito instituído, alguns criminosos poderiam ser segregados perpetuamente. Um modelo talvez daquilo em que, um dia, deveria se transformar todo o sistema penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como apontado ao longo desse artigo, os manicômios judiciários não foram primordialmente pensados para abrigar, de um modo geral, qualquer doente mental ou alienado que cometesse crimes. Destinavam-se especialmente aos criminosos considerados como "degenerados", "natos", "de índole", "anômalos morais". Todas essas categorias são versões distintas do que viria a ser chamado mais tarde de "personalidades psicopáticas" ou "sociopatas". Asilos e prisões se mostravam incapazes de recebê-los porque tais delinqüentes eram percebidos ora como habitantes de uma região intermediária entre a sanidade e a loucura ou entre a irresponsabilidade e a responsabilidade moral, ora como habitantes de uma região em que tais termos não faziam mais qualquer sentido.

É desse ponto de vista que podemos pensar a estrutura ambígua dos manicômios judiciários como a "solução final" de um conflito histórico. As conseqüências que tal estrutura acarreta para os internos são ainda mais iníquas, aos olhos de um observador contemporâneo, pois o próprio conflito que a originou está em larga medida ultrapassado. As categorias para as quais se destinava originalmente foram aos poucos consideradas não-científicas (como as de "anômalo moral", "degenerado" ou "criminosos nato") ou se tornaram residuais no pensamento psiquiátrico (como no caso das "personalidades psicopáticas"). É interessante notar que, a partir de determinado momento, muitos psiquiatras passaram a considerar o manicômio como uma instituição que não deveria mais se dedicar à contenção daqueles para os quais ela fora criada. 

Por exemplo, já em 1951, em estudo sobre a questão das personalidades-psicopáticas frente à legislação penal brasileira, Heitor Pereira Carrilho, que em 1920 defendera a construção dos manicômios judiciários justamente para a repressão dos "anômalos morais", afirmava que o manicômio judiciário deveria ser uma instituição "de cunho mais hospitalar", não sendo adequada ao abrigo das "personalidades-psicopáticas".

Desse modo, é possível pensar que, se ao menos originalmente havia uma adequação formal entre a estrutura do MJHC e as figuras que ele se propunha a abrigar - um semi-hospício ou semi-prisão para semi-loucos ou semi-criminosos, essa adequação formal foi, entretanto, desaparecendo ao longo do século XX e, hoje, nos encontramos frente a um semi-hospício ou semi-prisão que recebe indivíduos considerados doentes mentais.

Por fazer parte do sistema penitenciário, não é de surpreender que manicômios judiciários sejam um dos espaços mais impermeáveis às transformações pautadas na defesa dos direitos humanos dos pacientes e na sua des-hospitalização. Nesse caso, colocar-se ao lado dos pacientes é defender a própria extinção desse tipo de instituição e uma profunda reforma da legislação que a suporta, pois, como há três décadas escrevia um dos expoentes da antipsiquiatria, Thomas Szasz18: "Para o 'paciente-delinquente' não existe nem absolvição para a sua culpa, nem tratamento. Isso não é mais que um método cômodo para 'se livrar' de indivíduos que apresentam certos comportamentos anti-sociais" (p.148).

Para finalizar, talvez seja pertinente propor a reflexão de que foi justamente o caráter ambíguo e contraditório dos manicômios judiciários que assegurou que as engrenagens da Justiça continuassem operando, mesmo sob a condição de terem, como no caso dos loucos-criminosos, de produzir graves e irreversíveis injustiças. Talvez possamos mesmo considerá-lo um dos principais dispositivos práticos que nos permitem continuar vivendo em sociedades nas quais, como bem percebeu o antropólogo inglês E. E. Evans-Pritchard19, os homens são vistos simultaneamente como livres e escravos, sujeitos e objetos, inocentes e pecadores; e onde confusão, contradição ou irracionalidade são sempre vistos como atributos de povos que habitam terras longínquas, onde vivem imersos em estranhos rituais. Espero que o resgate da "história" do surgimento dos manicômios judiciários em nossa sociedade possa iluminar os desafios e contradições que a instituição continua a colocar àqueles que se preocupam com o destino social dos homens e mulheres que neles continuam a ser confinados.