terça-feira, 13 de setembro de 2011

Dívida do Estado

FABIO REIS MOTA 

A Constituição de 1988 reconheceu e indicou caminhos formais para a consolidação da democracia, promovendo uma inflexão na direção do exercício dos direitos de minorias que compõem nossa nação, como é o caso dos povos indígenas, e, de forma inédita, das populações tradicionais e das comunidades remanescentes de quilombos. Com a introdução do artigo 68 no ADCT (ato das disposições constitucionais transitórias) da Constituição, os remanescentes das comunidades de quilombos tornaram- se sujeitos de direitos, figurando como credores do Estado com relação à titulação como proprietários das terras que ocupam.

Entretanto, mais de 20 anos após a sua promulgação, apenas uma comunidade remanescente de quilombos no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, teve seu direito à propriedade efetivado pelo governo federal. Nesse sentido, o Brasil tem avançado de forma tímida no reconhecimento de direitos de grupos historicamente excluídos do acesso aos direitos civis fundamentais (ser proprietário, contratar e dispor de si mesmo).

O processo lento e gradual do fim da escravidão não resultou em benefícios aos ex-escravos. Ao contrário, a lei de 1850 inibiu e restringiu o acesso à propriedade por parte dos ex-escravos e dos imigrantes, estabelecendo mecanismos de tutela e de controle sobre eles. Mesmo nos casos em que as terras tinham sido doadas pelos antigos proprietários aos seus escravos, o ato de reconhecimento do direito à propriedade não obteve êxito.

É o caso, por exemplo, dos quilombolas da Marambaia, cujas terras foram doadas pelo antigo proprietário da fazenda logo após o fim da escravidão. Todavia, o Estado tem negado sistematicamente o direito de propriedade ao grupo. As sucessivas (e malsucedidas) mudanças no direito agrário permitiram a falência dos mecanismos de registros das terras, sobretudo com a grilagem, que promove distorções sérias à regularização fundiária no Brasil.

Ainda assim, as reivindicações dos quilombolas têm sido duramente criticadas por alguns setores da sociedade, sobretudo no que diz respeito aos critérios de definição do território e da identidade quilombola. A legitimidade dos quilombolas para agirem de forma autônoma e cidadã está frequentemente sob suspeição.

Afinal, são submetidos à tutela dos agentes externos, concebidos como legítimos para reconhecer e classificar as suas identidades sociais e outorgar- lhes suas identidades públicas. Não é por acaso que os grupos que se opõem aos direitos quilombolas veem com desconfiança os critérios de definição dos territórios dos quilombos.

Mas o artigo 68 se tornou um importante instrumento de regularização fundiária e dotou de visibilidade positiva as demandas de grupos estigmatizados e subalternos de nossa Res-Publica, cujas demandas de reconhecimento têm sido relegadas ao ostracismo Cabe salientar que o desenvolvimento social de uma nação não se mede apenas pelo seu PIB, mas pela capacidade que os gestores públicos têm de formular políticas públicas e dispositivos legais que permitam que modos diversos de reprodução econômica, social e cultural se expressem. Afinal, uma democracia vigorosa deve conferir legitimidade a outros sistemas econômicos e identitários no espaço público plural de um estado democrático de direito.

FABIO REIS MOTA é professor da UFF e pesquisador do InCT/INEAC.


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